sábado, 24 de outubro de 2009

A LENDA DA POLENTA

O milharal sob as águas do dilúvio (10°dia)

A LENDA DA POLENTA
Por Joanim Pepperoni, Phd

A Irma Overlock, Radicci e Dom Jerico

No princípio era o milho: erva anual de até três metros de altura, da família das gramíneas, com folhas lanceoladas, espiguetas masculinas em panícula terminal e espiguetas femininas axilares gerando espigas com grãos amarelos (Milhonis granulorum sabuguensis).
E vendo Deus que os grãos eram muito duros para serem triturados por humanos desdentados, pensou por algum tempo e depois agiu: tocou o solo e dele fez brotar um vulcão, cuja lava formou uma imensa elevação basáltica sobre a qual assentou a Terra da Cocanha. E confiando Deus que aquilo que tinha criado era bom, do mesmo material forjou o Nane Tamanca para que aprimorasse a sua criação. E novamente confiando Deus que aquilo que tinha criado era bom, do mesmo magma temperou a Mama, para que fiscalizasse e aconselhasse o Nane em tudo o que pusesse a mão. E, no sétimo dia, confiando Deus que aquilo que tinha criado era realmente bom, decidiu recolher-se às profundezas do céu para descansar.
Porém, nunca mais teve descanso...
Encontrando-se sozinhos no paraíso cocanhês, O Nane e a Mama puseram-se, primeiro, a fazer inúmeros Nanettos para auxiliarem no trabalho e povoarem a Terra da Cocanha. Tudo parecia bem: trabalhavam e agradeciam com hinos e orações tudo aquilo com que Deus os abençoava: o milho, o milho e o milho. Até que um dia, numa longa disputa pela divisão entre dois lotes, Nanetto Cainha assassinou brutalmente o irmão Nanetto Abel.
E pela primeira vez Deus revolveu-se no sono profundo de sua alcova celestial...
Assim, estavam lançadas as malignas sementes da discórdia, da cobiça e do empreendorismo no abençoado solo da Terra da Cocanha. Os filós transformaram-se em reuniões de homens de negócios; os templos foram ricamente adornados com peças de ouro, e a fé encorpou-se com o verniz dos luxuosos encontros sociais; as propriedades ganharam cercas farpadas, e os filhos tiveram que migrar para lugares longínquos em busca de novas cocanhas; o preço do milho inflacionou assustadoramente, e a fome passou a grassar nas ruas e a grasnar nas panelas vazias.
Se Deus, no princípio, tivesse sonhado com tudo isso, não teria criado o milho ou teria inventado logo a polenta...
O Nane Tamanca arvorou-se num deus e, porque havia muitos famintos desdentados na Terra da Cocanha, desenvolveu, com muito engenho e paciência, a nanetecnologia. Mirabolantes máquinas saíram de sua cabeça, para reduzir o milho (Milhonis granulorum sabuguensis) a um pó dourado (Milhonis farinensis): o debulhador de milho, o moedor de sabugos, o pilão manual, o monjolo e o moinho movidos com energia hídrica, entre tantas outras maravilhas reveladas somente aos escolhidos.
O Nane aliou-se a outros Nanes, que monopolizaram a produção do milho e da farinha, e enriqueceram rapidamente. A fome dos trabalhadores era mitigada com pequenas porções de farinha de milho que se ligava pela saliva dentro das bocas famintas, antes de percorrer os deploráveis esôfagos e mofar nos estômagos ulcerados. Enquanto isso, os ricos empreendedores locupletavam-se com mingaus de toda ordem, aos quais adicionavam pinhões e outros guisados tão insípidos quanto a própria farinha seca. Em razão disso, a pelagra disseminava-se em todos os lares, desde os mais ricos até os mais pobres.
E o que Deus viu das alturas foi uma Babilônia de paphlagônios assolados pela demência, pela diarréia e pela dermatite. Foi então que enviou o dilúvio para destruir sua própria criação. Chamou o Nane e deu-lhe as instruções: que abandonasse tudo, construísse uma arca nanetcnológica e se preparasse para o desastre diluviano. Em razão de ter sido o escolhido para aprimorar sua criação, Deus lhe dava uma nova chance para se retratar.
E choveu durante 40 dias e 40 noites. As águas cobriram as montanhas da Terra da Cocanha e tudo o que tinha vida sobre ela veio a perecer. Só sobraram o Nane Tamanca, a Mama e alguns poucos nanettos que estavam dentro da arca. E a Arca de Nane pairou sobre as águas misteriosas e revoltas pela fúria divina, durante longos 150 dias. Após 136 dias, Nane abriu a janela que fizera na arca e soltou um corvo, que ficou voando de um lado para o outro. Depois soltou uma pomba para ver se a água havia baixado, mas a pomba não tendo achado lugar para pousar, retornou para a arca.
Nane esperou mais alguns dias e soltou a pomba novamente. Quando ela retornou trouxe no bico um raminho novo de Milhonis granulorum sabuguensis; Nane entendeu então que as águas tinham baixado. Esperou mais sete dias e soltou a pomba mais uma vez. Desta vez ela não voltou. Então Nane removeu a cobertura da arca, olhou e viu que o solo estava enxuto. Saiu com sua família e retornou ao moinho.
E Deus apareceu a Nane e disse-lhe:
– Nunca mais vou destruir a Terra da Cocanha. Enquanto durar esta Terra, não deixarão de existir sementes de milho e pinhões, frio e calor, verão e inverno, dia e noite.
Abençoou Deus a Nane e a seus filhos e lhes disse:
– Multiplicai-vos mais uma vez e enchei a Terra da Cocanha.
Famintos e esfarrapados, mas vivos e exultantes com a superação da provação divina, entraram nas ruínas do velho moinho. Em uma tulha arruinada, restava um pouco de farinha encharcada pelas águas diluvianas. Quando levou, tremulamente, a primeira porção à boca, Nane teve uma indescritível surpresa: o guisado de farinha tinha um gosto diferente, mais picante e agradável ao paladar. Era a água do mar que, providencialmente, misturara-se às águas pluviais, invadira a tulha e operara o milagre.
Depois disso, o Nane inventou o fogolare, os caldeirões e as colheres de pau. Surgia, assim, a tão abençoada polenta da Terra da Cocanha (Guisadus farinaceus cocanhensis).
Mas apoderando-se do milagre divino, o Nane Tamanca patenteou-o da mesma forma que todas as suas outras invenções. Logo depois, inventou o turismo e os restaurantes, e passou a vender fatias de polenta aos visitantes como se fossem valiosas barras de ouro do melhor quilate.
E Deus, vendo tudo aquilo, deu as costas, cobriu o rosto com as mãos e ninguém sabe se riu ou chorou...

3 comentários:

  1. "Assim, estavam lançadas as malignas sementes da discórdia, da cobiça e do empreendorismo no abençoado solo da Terra da Cocanha. Os filós transformaram-se em reuniões de homens de negócios".

    Fantástico, JP. Simplesmente fantástico. Um abraço de teu discípulo Christóforo Capeletti.

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  2. Ilustre e inoxidável Joanim!

    Após uma breve pausa em meus afazeres científicos, estou aqui para avaliar se a CÁSPITE poderia liberar verbas públicas para o financiamento das suas pesquisas de campo (fui designado para ser um dos pareceristas, embora não me agrade o compromisso).
    Sei que muitos leitores/visitantes podem reprovar o seu brógui, e isso é justificável, pois o gosto é algo que varia como a polenta: uns gostam mais mole, outros mais dura.
    Vou considerar o teor da Lenda da Polenta no meu parecer final, pois fiquei entusiasmadíssimo com a versão cocanhesa das peripécias bíblicas. Se o brógui ultrapassar fronteiras, logo o Vaticano promoverá um novo Concílio e permitirá o uso da polenta nos atos litúrgicos. Isso seria o reconhecimento universal de que Deus não apenas tem ciência de cada fio do nosso cabelo como também tem ciência de cada grão de milho debulhado na Terra da Cocanha!

    Clobo Agnollini, PhD
    Parecerista CÁSPITE

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  3. Estimado Sr. Pepperoni, PhD.

    Hoje, curvo-me aos seus inomináveis conhecimentos mitológico-reais acerca das mais avançadas civilizações terrenas. Enquanto eu, insignificantemente, estudo os aspectos culturais da utilização do milho nas práticas cotidianas dos cocanheses, o Sr., do alto de sua pêagádância, examina as fundações de um povo estóico.
    Um trabalho memorável e que entrará para os anais da National Cocanhistic Library.

    Cordialmente,
    Gargalliazzo Polentoni, PhD.

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