A Irma Overlock, Radicci e Dom Jerico
No princípio era o milho: erva anual de até três metros de altura, da família das gramíneas, com folhas lanceoladas, espiguetas masculinas em panícula terminal e espiguetas femininas axilares gerando espigas com grãos amarelos (Milhonis granulorum sabuguensis).
E vendo Deus que os grãos eram muito duros para serem triturados por humanos desdentados, pensou por algum tempo e depois agiu: tocou o solo e dele fez brotar um vulcão, cuja lava formou uma imensa elevação basáltica sobre a qual assentou a Terra da Cocanha. E confiando Deus que aquilo que tinha criado era bom, do mesmo material forjou o Nane Tamanca para que aprimorasse a sua criação. E novamente confiando Deus que aquilo que tinha criado era bom, do mesmo magma temperou a Mama, para que fiscalizasse e aconselhasse o Nane em tudo o que pusesse a mão. E, no sétimo dia, confiando Deus que aquilo que tinha criado era realmente bom, decidiu recolher-se às profundezas do céu para descansar.
Porém, nunca mais teve descanso...
Encontrando-se sozinhos no paraíso cocanhês, O Nane e a Mama puseram-se, primeiro, a fazer inúmeros Nanettos para auxiliarem no trabalho e povoarem a Terra da Cocanha. Tudo parecia bem: trabalhavam e agradeciam com hinos e orações tudo aquilo com que Deus os abençoava: o milho, o milho e o milho. Até que um dia, numa longa disputa pela divisão entre dois lotes, Nanetto Cainha assassinou brutalmente o irmão Nanetto Abel.
E pela primeira vez Deus revolveu-se no sono profundo de sua alcova celestial...
Assim, estavam lançadas as malignas sementes da discórdia, da cobiça e do empreendorismo no abençoado solo da Terra da Cocanha. Os filós transformaram-se em reuniões de homens de negócios; os templos foram ricamente adornados com peças de ouro, e a fé encorpou-se com o verniz dos luxuosos encontros sociais; as propriedades ganharam cercas farpadas, e os filhos tiveram que migrar para lugares longínquos em busca de novas cocanhas; o preço do milho inflacionou assustadoramente, e a fome passou a grassar nas ruas e a grasnar nas panelas vazias.
Se Deus, no princípio, tivesse sonhado com tudo isso, não teria criado o milho ou teria inventado logo a polenta...
O Nane Tamanca arvorou-se num deus e, porque havia muitos famintos desdentados na Terra da Cocanha, desenvolveu, com muito engenho e paciência, a nanetecnologia. Mirabolantes máquinas saíram de sua cabeça, para reduzir o milho (Milhonis granulorum sabuguensis) a um pó dourado (Milhonis farinensis): o debulhador de milho, o moedor de sabugos, o pilão manual, o monjolo e o moinho movidos com energia hídrica, entre tantas outras maravilhas reveladas somente aos escolhidos.
O Nane aliou-se a outros Nanes, que monopolizaram a produção do milho e da farinha, e enriqueceram rapidamente. A fome dos trabalhadores era mitigada com pequenas porções de farinha de milho que se ligava pela saliva dentro das bocas famintas, antes de percorrer os deploráveis esôfagos e mofar nos estômagos ulcerados. Enquanto isso, os ricos empreendedores locupletavam-se com mingaus de toda ordem, aos quais adicionavam pinhões e outros guisados tão insípidos quanto a própria farinha seca. Em razão disso, a pelagra disseminava-se em todos os lares, desde os mais ricos até os mais pobres.
E o que Deus viu das alturas foi uma Babilônia de paphlagônios assolados pela demência, pela diarréia e pela dermatite. Foi então que enviou o dilúvio para destruir sua própria criação. Chamou o Nane e deu-lhe as instruções: que abandonasse tudo, construísse uma arca nanetcnológica e se preparasse para o desastre diluviano. Em razão de ter sido o escolhido para aprimorar sua criação, Deus lhe dava uma nova chance para se retratar.
E choveu durante 40 dias e 40 noites. As águas cobriram as montanhas da Terra da Cocanha e tudo o que tinha vida sobre ela veio a perecer. Só sobraram o Nane Tamanca, a Mama e alguns poucos nanettos que estavam dentro da arca. E a Arca de Nane pairou sobre as águas misteriosas e revoltas pela fúria divina, durante longos 150 dias. Após 136 dias, Nane abriu a janela que fizera na arca e soltou um corvo, que ficou voando de um lado para o outro. Depois soltou uma pomba para ver se a água havia baixado, mas a pomba não tendo achado lugar para pousar, retornou para a arca.
Nane esperou mais alguns dias e soltou a pomba novamente. Quando ela retornou trouxe no bico um raminho novo de Milhonis granulorum sabuguensis; Nane entendeu então que as águas tinham baixado. Esperou mais sete dias e soltou a pomba mais uma vez. Desta vez ela não voltou. Então Nane removeu a cobertura da arca, olhou e viu que o solo estava enxuto. Saiu com sua família e retornou ao moinho.
E Deus apareceu a Nane e disse-lhe:
– Nunca mais vou destruir a Terra da Cocanha. Enquanto durar esta Terra, não deixarão de existir sementes de milho e pinhões, frio e calor, verão e inverno, dia e noite.
Abençoou Deus a Nane e a seus filhos e lhes disse:
– Multiplicai-vos mais uma vez e enchei a Terra da Cocanha.
Famintos e esfarrapados, mas vivos e exultantes com a superação da provação divina, entraram nas ruínas do velho moinho. Em uma tulha arruinada, restava um pouco de farinha encharcada pelas águas diluvianas. Quando levou, tremulamente, a primeira porção à boca, Nane teve uma indescritível surpresa: o guisado de farinha tinha um gosto diferente, mais picante e agradável ao paladar. Era a água do mar que, providencialmente, misturara-se às águas pluviais, invadira a tulha e operara o milagre.
Depois disso, o Nane inventou o fogolare, os caldeirões e as colheres de pau. Surgia, assim, a tão abençoada polenta da Terra da Cocanha (Guisadus farinaceus cocanhensis).
Mas apoderando-se do milagre divino, o Nane Tamanca patenteou-o da mesma forma que todas as suas outras invenções. Logo depois, inventou o turismo e os restaurantes, e passou a vender fatias de polenta aos visitantes como se fossem valiosas barras de ouro do melhor quilate.
E Deus, vendo tudo aquilo, deu as costas, cobriu o rosto com as mãos e ninguém sabe se riu ou chorou...